Archive for agosto 2018

Sou eu

Não é ele. Sou eu.

Passei os últimos meses lutando mentalmente com ele. Me afastei fisicamente, me destaquei emocionalmente, me encolhi em mim mesma para me achar. Vivendo tantos abusos, resolvi me desapegar no silêncio. 

Forjando minha independência, entretanto, criei uma armadilha para mim mesma. Acabou de passar por mim um sopro de ciência sobre isso. Sabe a história do predador Barba Azul? Em um momento catártico acabo de me perceber minha própria predadora: estou me matando.

Passei os últimos meses comendo, comendo e comendo. Muito. De cerca de um mês para cá tive espasmos de tentativa de reverter o quadro. Em um primeiro momento a luta contra essa tortura durou quinze dias, depois apenas cinco. Minha estratégia foi rastrear meus hábitos. Estava indo muito bem nos primeiros quinze dias, quando acabei me desvirtuando. Dessa última vez, em relação aos cinco dias que foram interrompidos, fui atravessada por uma bofetada no rosto. Eu não sei o que você sente quando é agredida. Eu sei o que eu já senti nas tantas vezes e principalmente o que eu senti da última vez.

Vim escrever neste momento, depois de uma epifania, mas apenas porque agora estou conseguindo ao menos respirar. Para falar a verdade não estou sentindo nada. Coloquei uma música para ver se entro no flow do sentimento, para possibilitar a escrita, mas tudo em mim está estático. Poderiam dizer que é efeito do novo antidepressivo, mas não é. Estou tomando há mais de um mês e estava bem; nada parecido com o que sinto agora, que sei que é efeito colateral de uma bofetada no rosto. Semana passada o pensamento de sentar e escrever não era uma opção: ia sair sangue nas minhas tintas, ia sair lágrima de todos os poros. Estava tão latente, vivo. Doía mas eu continuava, como um cadáver em vida. A diferença é que era/é um cadáver que comia/e muito.

A agressão foi no domingo. Eu estava dirigindo e ele olhando o celular. Falei: "amor, posso te dar um toque? Você está muito viciado no celular (por causa das apostas)". Começou a acusação por parte dele de que eu também usava muito o celular. Eu falei que se um dos amigos dele estivesse no carro ele não estaria no celular (verdade mais do que verdadeira; ele estaria conversando animadamente) e o chamei de gay. Estava dirigindo e, por ter dito isso, fui esbofeteada no rosto, enquanto eu olhava para frente - sem qualquer chance de ver ou me esquivar.

Claro que eu não deveria ter dito que ele era gay. Eu particularmente não compreendo por que isso é tão ofensivo, mas entendo que na construção macho escroto isso é um acinte. Mas violência física? Não, não justifica.

Dizem minhas leituras que os abusadores têm um ciclo a cumprir. Primeiro a violência, depois a romantização dela. O meu, não. Sofro com um abusador que se justifica em cima de mim. Me viola várias vezes. Mas sempre me rebato com a culpa de me sentir a maior violadora de mim mesma, por permitir. Mas vamos chegar lá... antes, vamos entender o que aquele tapa no rosto significou na minha trajetória de sobrevivência.

Estava eu anotando todos os meus hábitos, desde que acordava até a hora de dormir. Anotando tudo o que comia. Sentindo prazer de estar me cuidando e caminhando o trajeto que eu sabia que tinha que percorrer para me reencontrar. Estava feliz. Me isolei, me recolhi em mim mesma, mas estava encontrando muito prazer em cuidar de mim, de conseguir, dia após dia. Sabe quando você está construindo um castelinho de areia por horas? Sabe quando cada grão de areia que é sobreposto significa um horizonte cada vez mais claro do castelo? Imagina fazer isso dias e dias a fio. Ter como quase o único objetivo de vida ir à praia e sobrepor os grãos. Ao final do dia, anotar todos os grãos sobrepostos para poder perceber seus avanços. Espero que você não saiba o que se sente quando depois de dias e dias de dedicação, o mar vem e arrebata tudo, de uma só vez. Foi assim que aconteceu comigo da última vez. O problema é que a força do mar é irracional, involuntária e ontológica, mas a daquele braço, não.

Eu tenho focado minhas lentes, minhas práticas, toda a minha vida em me erguer, em caminhar na minha solitude, em me entender enquanto ser humano que se basta. Caminhei alguns dias na certeza de que meus hábitos saudáveis de sono, alimentação e atividades seriam a chave para a porta do meu reencontro ainda mais profundo comigo mesma. Mas fiquei ciente da potência de um soco, mais uma vez. Dessa vez eu sentia como se estivesse voltando a correr e de repente algo me arrebatasse, eu caísse no chão e lá ficasse. Sabe como quando aconteceu com o Vanderlei Silva, quando um estranho o empurrou? A diferença é que ele no mesmo minuto levantou e voltou a correr. Devo dizer, entretanto, a "pernada" que vem de dentro de um relacionamento imobiliza.

Passei a última semana obcecada em terminar. Por que não terminei o relacionamento na hora? Sinceramente? Medo. Eu sei qual é a dinâmica de quando eu tento terminar pessoalmente. Ele não me deixa ir embora, é toda uma cena que depois de uma bofetada eu não poderia pensar em passar. Então eu levei a bofetada no rosto e imediatamente me calei. Estava chegando no Rio, peguei o retorno e voltei para Niterói. Deixei-o em casa, me neguei a dar beijo, fui para a minha casa, me deitei na minha cama e quis me matar. Eu já estava morta.

Não estaria exagerando nem um segundo em dizer que aquele soco me matou. Não por completo, porque graças a Deus ainda respiro, mas matou mais um pouco de mim, certamente. Consegui chegar no meu quarto para começar a chorar. Em silêncio, em retidão. Não é o tipo de coisa que você chega em casa e desabafa com sua mãe se você ainda não está com cem por cento de certeza de que vai aguentar o término. Então eu me recolhi.

Passei a semana inteira quieta. Mal falei com ele. Mas falaram comigo. A vida falou comigo três vezes. Na terça-feira, quando eu fui para Seropédica e gravei pra minha rede social a fala das palestrantes, tão afinadas com meus valores  e meu propósito e distantes do que acontecia na minha vida real. Minha mãe, que assistiu à Live que eu fiz da palestra e não sabe das agressões físicas, depois comentou comigo que deve ser muito difícil o que estou passando, já que penso uma coisa e vivo outra no meu relacionamento com ele. Mal sabe ela...

Na quinta a vida falou comigo quando eu estava me encaminhando para a Universidade para dar uma aula sobre teorias feministas. Imagine como eu me sinto uma farsa! Eu digo para minhas alunas que elas não devem esperar o outro, que elas devem se defender, determinar o que está de acordo com os valores delas e pautarem suas relações a partir disso, mas vivo uma relação de ponta cabeça em relação a essas diretrizes.

Ainda na quinta, uma conhecida veio falar comigo no facebook sobre como ela poderia saber mais sobre essas pautas feministas, já que tinha sido agredida pelo namorado, perdoou, mas ele retornou a agredi-la e ela terminou o namoro que dali a duas semanas viraria casamento. Conversei e orientei-na. Expliquei o que ela deveria fazer, o quanto tudo que ela estava sentindo era compreensível e que ele certamente faria novamente se ela aceitasse. Ela terminou o que em duas semanas seria um casamento e eu não consigo terminar um relacionamento que há três anos é dor.

Tenho tanto medo de ficar sozinha que como toda a minha dor, minha decepção com ele e principalmente comigo, permaneço. Tenho tido prazer apenas em planejar e executar algumas ideias profissionais e em comer. Quando olho para a minha vida pessoal só sinto desgosto. Tenho 30 anos, sou feminista e estou em um relacionamento abusivo com um agressor que sequer reconhece e se desculpa. Eu nem sinto que fracassei, porque eu tentei de tudo, eu fiz de tudo. Eu sinto que estou fracassando, em não me libertar. Com medo de sofrer, eu sofro. Com medo de doer, dói. Com medo de ficar sozinha, estou cada vez mais.

Mas para falar a verdade não sinto quase nada neste momento, a não ser apreensão por ser eu, como diz Jorge Vercilo, prisioneiro meu.

Leave a comment

Search

Swedish Greys - a WordPress theme from Nordic Themepark. Converted by LiteThemes.com.