Archive for 2018

1.095 dias

Hoje, terça, eu estava em um seminário e, conversando com uma menina que tem um projeto de renome no Rio de Janeiro, ela me falava sobre compatibilizar agenda com possíveis pretendentes. Ela dizia que tinha muitos compromissos e que, por isso, não tinha tempo a perder.

Eu então disse a ela que ela tinha que tomar a mesma decisão que eu... Falei algo assim: "agora que eu separei decidi que só quero alguém que seja da mesma dinâmica, ou seja, do mundo acadêmico", algo assim. Então ela me perguntou se eu era casada. Respondi que não, que tinha saído de um namoro de 3 anos, mas que agora me sentia livre. Ela disse: 3 anos? Quase como um casamento mesmo. E a conversa seguiu...

No sábado, eu havia sentido uma dor horrível na lombar, a ponto de quase não conseguir me movimentar e de ter que ir ao hospital no domingo praticamente me dopar com remédios pra conseguir me mexer. Era o resultado de alguns dias sentada fazendo pesquisa quantitativa e de alguns últimos meses em que não saí de casa com medo de andar na rua e de te encontrar.

Paro para contar agora e no dia 1 de dezembro farão três meses que eu te disse adeus; que fechei a porta da minha casa e da minha vida pra você. Me surpreendi agora ao fazer essa conta; achava que já eram quatro meses, mas não... três... Três meses depois de três anos. É o mesmo número, mas com significados tão diferentes.

Nesses três anos não sabia meu nome, meu endereço, meu paradeiro, meus gostos, meu nada. Vivi uma loucura acompanhada e dirigida por você. Sorri muito e chorei mais. Vivi 1.095 dias de dúvida. 1.095 dias de dúvida sobre mim. Uma dúvida regada e adubada por você. Quando estava tudo escancarado eu era duvidada e a dúvida me endividava comigo mesma. A soma das angústias se multiplicavam, mas o medo de ficar sozinha não diminuía. Quem seria eu nessa conta de subtração? Eu, que antigamente me via como ser humano que só tinha a somar, me via então tão diminuída. Me sentia tão zero à esquerda.

Foi então que há três meses eu mandei você ir embora e te deletei da minha vida online. Fim.

Fim? Não foi o fim; as reverberações estão todas aqui. Fazem três meses que não ando na rua da minha cidade com paz no coração; que eu tenho medo de encontrar alguém que veja que eu engordei; que eu tenho medo de te encontrar. Fazem três meses que eu vou te esquecendo lentamente, mas que por vezes você ressurge nos meus sonhos e me atormenta à noite. Fazem três meses que eu achei que estava boa da depressão, parei de tomar o remédio e fui para abaixo do fundo do poço novamente. Fazem três meses que uma camada imensa de gordura cobriu o meu corpo e me faz me desconhecer diante do espelho.

Fazem três meses que eu te mandei ir embora, mas não acabou; ainda não acabou porque as sequelas, muitas delas, ainda estão aqui. O aperto no coração que sinto ao ver a história de uma mulher agredida ou morta pelo companheiro; a vontade de não estar com as pessoas, pra não ter que prestar contas de tudo o que você me fez e que eu permiti nesse relacionamento. São tantas as coisas que ainda estão aqui...

Você não está, mas uma parte de você certamente ficou. Sempre fica, não é, é como dizem... Mas está vivo, latente, em carne demais ainda. Não é por outra razão que enquanto escrevo este texto tem um saco de gelo na minha lombar; a mesma lombar que foi maculada por eu não querer ir na rua com medo de esbarrar com você. São medos, inseguranças que ainda estão aqui. Elas certamente vão embora, mas estou vivendo-as, afastando-as calmamente e entendendo quem é de verdade a Raquel, sem todas essas camadas de resquícios alheios.

É um trabalho diário e paciente. Na maior parte do tempo não me lembro de você. Estou tão focada em mim que simplesmente não me lembro; só na hora de contabilizar as coisas que tenho que superar, aí você me acerta em cheio a mente. Mas é por hora, só por agora. Foram três anos, 1.095 e eles não vão embora assim, de um dia para o outro.

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Descobri que te amo demais

Segunda feira, 15 de outubro de 2018:

Meu despertador tocou às 8h da manhã, como eu havia programado. Ouvi o alarme, abri os olhos, procurei o celular para desligar o som e durante dois segundos, ainda meio grogue de sono, tentei entender o que eu tinha que fazer àquela hora. Foi então que eu lembrei que eu tinha colocado o despertador para me acordar às 8h para voltar a me acostumar a acordar cedo. 

Não pestanejei: levantei. Quando eu cheguei no banheiro me dei conta do que tinha acontecido. O despertador tocou e eu não enrolei para levantar mesmo não tendo hora para sair de casa, não tendo aula para dar, compromisso com ex orientadora, compromisso de traduzir texto, compromisso de estar em algum lugar. Não era nada disso.

Naquele momento, depois de muitos anos, eu me levantei assim que o despertador tocou apenas porque eu tinha um compromisso... comigo.

Levantei, demorei ainda umas duas horas para me arrumar (porque tomei banho, tomei café direitinho, lavei e sequei meu cabelo) e fui para a academia. Eu pensei um pouco antes de decidir se iria lavar os cabelos, porque o aspecto dele não estava bom, mas afinal eu iria suá-lo na academia.. Entretanto, não demorou muito para eu tomar a decisão de lavá-lo, já que, não importava em quanto tempo iria sujá-lo, eu queria estar bem ao sair de casa. Por medo de encontrar alguém, de me verem? Não. Depois muito tempo (se é que esse momento já existiu outrora) eu iria lavar o cabelo e secar antes de ir à academia apenas porque eu queria me olhar no espelho e me sentir bem para mim, independentemente de qualquer outro fator.

Foram pensamentos e ações que me fizeram suspirar aliviada. Não porque eu estava me reencontrando, mas porque eu estava encontrando uma nova Raquel: a que se ama.

Não foi à toa que passei o final de semana entoando "Verdade" do Zeca Pagodinho para mim mesma.

Raquel,

"Descobri que te amo demais (muito!)
Descobri em você minha paz (só eu posso me dar a paz; ninguém pode me dar ou tirá-la)
Descobri sem querer a vida (me amando descubro a seiva da vida)
Verdade (e isso é tão verdadeiro)
Pra ganhar teu amor fiz mandinga (pra conquistar esse amor fui a fundo no autoconhecimento)
Fui a ginga de um bom capoeira (pedi às Deus, à Deus, aos meus mestres, anjos da guarda...)
Dei rasteira na sua emoção (entendi que era hora de dar adeus às emoções negativas)
Com o seu coração fiz zoeira (utilizei de mecanismos para encontrar o verdadeiro amor)
Fui a beira de um rio e você (fui à beira do precipício)
Uma ceia com pãozinho e flor (e me cerquei de insumos para vencê-lo)
Uma luz para guiar sua estrada (só eu posso iluminar minha estada - e meus guias)
A entrega perfeita do amor (a conexão perfeita do que é amor)
Verdade (e isso é tão verdadeiro)
Como negar essa linda emoção (é visível que estou muito melhor)
Que tanto bem fez pro meu coração (que meu coração está cada vez mais feliz)
E a minha paixão adormecida (que estou descobrindo uma paixão que não conhecia)
Meu amor, meu amor incendeia (meu amor por mim me incendeia)
Nossa cama parece uma teia (posso sonhar)
Teu olhar uma luz que clareia (posso planejar)
Meu caminho tão qual lua cheia (posso executar)
Eu nem posso pensar te perder (não viverei nunca sem mim)
Ai de mim esse amor terminar (então se eu não me amo eu murcho)
Sem você minha felicidade (sem meu amor próprio não há alegria genuína)
Morreria de tanto penar (se eu não me dou vida eu morro)
Verdade" (e isso é tão verdadeiro)

Estou com você,

Raquel

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Retórica ilógica

Não sei se é o momento de diminuir a velocidade ou acelerar. Desde de que terminei o relacionamento destrutivo no qual eu estava, eu imergi em duas buscas: no entendimento do narcisismo e na luta contra Bolsonaro - seriam duas formas diferentes da mesma coisa? Enfim, o ato foi esse final de semana e agora me encontrei no primeiro dia de outubro, em uma segunda feira, cheia de expectativas para fazer um mês perfeito de dieta e exercícios físicos mas um acordar totalmente sem energia.

Acordei hoje com aquele sentimento característico da depressão: a vontade de não levantar da cama. Por mim teria passado o dia hoje na cama comendo e assistindo a uma série. Não o fiz porque sei que é um ciclo que se alimenta e também porque minha mãe estava trabalhando de casa, então ia "pegar mal". Acabei enrolando durante todo o dia, sem fazer nada de útil e sem fazer quase nada da minha lista de tarefas para o dia de hoje.

Hoje é um daqueles dias em que eu me deparo comigo mesma, com o fato de que meu problema não era apenas o meu ex relacionamento destrutivo, mas também - e talvez seja o por que - a depressão pela qual estou passando. Nos últimos meses eu vivi quase como se ela não existisse. Estava tão focada nos meus projetos profissionais que era quase como se eu tomasse o antidepressivo tão somente para cumprir um compromisso médico, porque parecia que a depressão fosse algo já resolvido.

Mas hoje ela deu as caras. Eu sei senti-la, porque ela suga minhas energias. Não sei se foi a pressão que coloquei em mim para fazer desse um mês incrível, cheio de metas batidas todos os dias etc. Na verdade eu sei que foi isso, mas fica aquela pergunta: por que planejar e cumprir virou um problema?

Tenho um texto longo para traduzir, pelo qual serei remunerada; tenho planos estratégicos de advocacia para colocar em prática, tenho um corpo para restaurar, uma alimentação para cuidar, um carro para revisar, supermercado para fazer, psiquiatra para ir, mas a vontade de ficar deitada na cama superou tudo hoje. Na verdade, para ser sincera, a única coisa que venceu foi a vontade de deixar meu quarto arrumado para não me sentir tão inútil e para ver se a motivação vinha, mas não veio. Ah, eu tomei banho para deixar meu cabelo desembaraçado caso me viesse um ímpeto de comparecer à academia, mas não fui.

Hoje foi um daqueles dias que eu perdi. Um daqueles dias em que você tem que olhar no espelho e entender que está sim passando por um problema, senão fica angustiante demais, mais. Hoje pode ser um dia ruim para uma pessoa "normal", mas pode ser o início da reativação de um ciclo destrutivo ao qual eu não posso ceder.

Penso em ir na rua, sei que tenho que ir para quebrar o ciclo, mas não vou. Fico em casa, troco de roupa, tenho vergonha de sair. Tenho vergonha de as pessoas me verem e assistirem meu caminhar com doze quilos a mais. Isso me afasta da academia e já sabemos como a bola de neve aumenta. Penso em ficar em casa e receber o pedreiro que tem que quebrar a parede e resolver um encanamento, mas adio. Veja bem, estou plenamente apta a recebê-lo, iniciar o processo, mas não quero. Antes tenho que falar com a secretária do prédio, mas não quero ter que encarar a celeuma administrativa que é lidar com as pessoas que habitam meu CEP. Essas coisas comezinhas hoje são grandes demais.

Não falo. O mundo continua a girar como se nada estivesse acontecendo. Converso sobre política com minha mãe, com minhas amigas no what'sapp e o mundo continua a girar - aliás, política é o que tem realmente me movido nos últimos meses, e me consumido também.

Hoje vi um meme que falava assim: "engraçado crescer, você percebe que metade dos seus amigos está tomando remédio por razões psicológicas e a outra metade precisa tomar", algo assim. Começo então a me lembrar de uma amiga minha próxima que tem problema com ansiedade. Desde que eu comecei a tomar antidepressivo, há um ano e meio, ela estava tomando ansiolítico, mas por um brevíssimo tempo e aí parou, voltou, parou, voltou. Mas o interessante de observar não é isso, mas sim como ela conduz esse discurso. Todos sabem. As crises, as histórias, os impedimentos, as faltas, as angústias etc são repertório público. Ela é de um estado do Nordeste, está aqui estudando no Rio custeada pela mãe - que perdeu um dos empregos, tem o apoio de um namorado super fofo que vai morar com ela em breve, tem amigas, enfim, tem toda uma rede de apoio que permite que ela more em outro estado mesmo sem trabalhar e ainda assim as fragilidades dela são um tópico constante. A nossa orientadora sente pena, fala que em breve vão conversar sobre possibilidades profissionais.

Aí eu paro para pensar. Pode chamar de recalque, mas vamos analisar. Eu moro na casa dos meus pais; se eu falasse que ia morar em outro estado com eles me custeando eles iriam rir da minha cara; até um mês atrás namorava um cara que me traía e me batia, que nunca me ajudou sequer para uma conversa em relação à depressão e praticamente ninguém sabia de nada disso. E ninguém continua sabendo de nada disso. Quando uma das amigas me pergunta alguma coisa, eu respondo pontualmente sobre o assunto, elas ficam assustadas, se compadecem, mas eu logo mudo o tópico. Do que adianta a sessão de debate amoroso? Quando eu mais precisei eu não pude falar porque seria julgada e agora que eu consegui me tirar daquela situação eu sei que se falasse tudo o que eu aceitei eu seria de alguma forma julgada também. Então para quê falar? Odeio vitimismos, mas também odeio quem acaba se beneficiando por falar e dramatizar publicamente todas as suas dores. Talvez esteja aí o meu recalque: eu não consigo falar.

Escrever para mim é mais fácil. É natural, fluido e também resguardado. Meus textos ficam em um blog que praticamente não tem acesso e meus pensamentos mais profundos estão sendo reorganizados na minha mente enquanto minha alma tenta se fortalecer depois de tantos anos de silenciamento. Então escrever tem sido esse reencontro e refúgio.

Em geral, ao final dos meus textos me vem um insight sobre o momento. Dessa vez não veio. Vim falar sobre depressão e a narrativa não encontrou um desfecho com significado. Não me lembro a última vez que escrevi um texto tão desconexo e sem uma continuidade de meio e fim. Talvez seja porque a depressão não faça sentido para mim ainda. Não a compreendo; não está madura; não tem racionalidade. E será que algum dia terá? Não sei, só sei que esse texto acabou por ser igual ao que ela representa para mim: uma completa falta de entendimento.

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Riso

Essa foi uma noite bonita.

Eu cheguei em casa cansada, depois de uma reunião do GT de comunicação e da plenária do Ato das Mulheres e achei que ia descansar. Mas assim que coloquei o pé dentro do quarto surgiu a necessidade de fazermos uma nota pra imprensa, o que nos tomou mais umas duas ou três horas da noite.

Até desligar o cérebro, fui dormir era umas três da madrugada. Não lembro com o que sonhei, mas sorri. Sorri, não, gargalhei. Me lembro de ter acordado de manhã, antes de o despertador tocar, gargalhando. Percebi o riso, pensei o quanto aquilo era engraçado e voltei a dormir.

A vida tem graça. Quando eu estou cuidando de mim e do mundo, a vida é feliz.

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O mundo

Fim do domingo me lembrei de você. Não porque fizéssemos algo muito incrível no final dos domingos ou porque estivesse com vontade de estar com você, só me bateu, de repente, uma saudade de nós. De quando eu deitava nos seus braços e você reclamava brincando, falando que eu queria ficar "dentro de você". Você tinha muita dificuldade de aceitar afeto sem fazer qualquer palhaçada para desviar a atenção. Lembrei disso e bateu aquela saudade de nós.

Caíram algumas lágrimas, me penitenciei por elas, até que olhei pro meu sabonete facial no banheiro, no qual estava escrito "cleanance" e na mesma hora entendi: calma, isso faz parte da limpeza. As lágrimas fazem parte desse processo e você não tem que se envergonhar por elas virem de vez em quando. Me acalmei. Ao total foram umas talvez sete lágrimas. Foram poucas, mas meu racional logo se preocupou. Me tranquilizei com a mensagem no banheiro e me pus a pensar... e me lembrei.

Me lembrei do final de semana anterior ao término, quando estávamos na casa da avó do seu amigo, você foi pegar minha mochila no meu carro, porque algo estava incomodando meu olho e meu produto das lentes estava na minha mochila lá fora. Voltou com a mochila e uma notícia para os amigos: vão lá porque há duas meninas negras, como vocês gostam.

Aquela interrogação na minha mente, mas decidi não dar muita atenção àquilo. Os dois saíram à caça das meninas, meu ex ficou conversando com a avó do amigo dele e eu fui ao banheiro mexer nas minhas lentes. Voltei para a sala e um pouco depois os dois meninos voltaram dizendo que tinham pegado o instagram das meninas. Muito burburinho em torno do assunto e indaguei: que história é essa de você ir lá fora e voltar falando de mulher? (na mesma hora pensei o caos social que seria se tivesse sido eu.) Começou o "deixa disso" por parte do meu ex, o "nada a ver" e a avó do amigo dele me olhava... ela já sabia do que acontecia, hoje percebo.

Um tempo depois meu ex me pediu para irmos embora. Deixei-o em casa, fui para a minha. Um tempo depois ele me ligou dizendo que a luz tinha faltado lá, perguntando se tinha também na minha casa. Um pequeno papo, desligamos.

Nada demais se naquela madrugada em que eu terminei eu não tivesse lido que por volta daquela hora em que você me ligou você tinha mandado uma mensagem para o seu amigo falando: "rápido, pergunta se as mulheres querem sair". Depois ainda ligou para ele - se eu te conheço bem, para saber se ia ter a saída, o que constatei ao olhar as chamadas no telefone.

Ao lembrar dessa cena imediatamente minha pequena saudade se esvaiu. Saudade do quê? Na minha cara, pegando a minha mochila, no meu carro, ele conseguiu articular uma traição. No meio de uma circunstância completamente mundana ele profanava.

Nesse momento entendi que era hora de colocar no lugar o globo terrestre que eu tinha comprado e guardado para dar de aniversário para ele. Aqui cabe um parênteses: antes de terminar, nas semanas, talvez meses anteriores, eu estava me sentindo muito encurralada, muito insatisfeita e infeliz porque estava entrando em um processo de conscientização de que eu nunca seria realmente feliz, em paz naquela relacionamento. Me debatia comigo mesma e com meus guias à noite. Eu tinha um deadline, pois tinha colocado em minha cabeça, depois de uma consulta astrológica, que se meu ex não se emendasse eu terminaria com ele no fim do ano.

Em uma daquelas tantas noites chorando sabendo o que eu tinha que fazer, mas sem saber como, onde arranjaria forças dentro de mim para isso, eu pensei no globo terrestre que eu tinha comprado pra ele e estava guardado. O aniversário dele seria no dia 31 de agosto e eu pensei que seria muita vitória se eu conseguisse terminar antes e colocar o globo na minha estante, como símbolo do meu triunfo, como a materialização de que, mesmo após três anos de sofrimento, eu consegui dar fim ao relacionamento.

Pois bem, depois da pequena saudade e da enorme lembrança que se abateu sobre mim nesse domingo, soube que era a hora de colocar o globo terrestre onde ele sempre pertenceu: na minha estante! Estava adiando esse momento porque como tinha dado a ele o presente na noite do dia 31 e terminei com ele na manhã no dia 1o, achei que seria doloroso demais ficar olhando para o presente que eu comprei para ele, que eu dei para ele, mas que neguei a ele ao mandá-lo embora (sim, ele teve a cara de pau de reivindicar o presente depois de eu ter visto vários absurdos no celular dele, como uma foto do pau dele - que ele não tinha mandado pra mim, e uma conversa sobre ele e os amigos terem ido para a Vila Mimosa - para quem não conhece, é o lugar em que se, digamos, contrata uma prostitua por qualquer vinte reais). Achei que seria difícil ficar lembrando de como ele acordou assustado ao eu abrir a cortina e mandá-lo embora naquela manhã.

Realmente, seria difícil... se não fosse mais difícil ainda me lembrar quantas mentiras, quantas traições, quantas humilhações, quantas agressões, quanta violência, quantos absurdos eu sofri durante os últimos três anos. Ficar com o globo não foi nada...

Coloquei o globo terrestre na minha estante e ficou perfeito. Parece que estava faltando exatamente ele no local onde está. O globo está no lugar certo porque eu mereci o mundo; eu mereço em todas as belas acepções que a palavra "mundo" pode ter. Eu conquistei esse direito. Agora, o mundo é meu. 

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Sextas-feiras

Sempre amei sextas-feiras. Dizem que por ser taurina tem algo relacionado ao meu signo, mas seja lá qual for a razão sempre tive uma relação especial com o dia. Não só porque é o início do fim de semana, mas talvez porque minha memória afetiva construiu sextas solitárias fazendo o que EU mais amava.

Quando era menor, as sextas eram dedicadas a ir com meu pai buscar minha mãe no trabalho, passarmos no mercado, irmos a uma locadora. Isso nem pode ser considerado um programa, mas era um itinerário que eu adorava. Ou mesmo a assistir chiquititas ou a um filme sozinha. Lembro de ser um dia dedicado a coisas que eu realmente gostava de fazer - principalmente sozinha.

Lembro que na época da faculdade, quando meus pais estavam mais folgados financeiramente - afinal eu estudava em uma Universidade Pública, eu ia para uma rua aqui da minha cidade, a melhor de lojas, e passava a tarde experimentando roupas. Na verdade, eu estava experimentando sonhos. A cada roupa eu me imaginava em uma situação, a cada acessório que eu pensava em adquirir havia pro trás a vontade de ser melhor: uma mulher mais forte, mais bem decidida, mais dona de si e mais atraente também. Passei meses e até anos tendo esse ritual semanal de passear pelas lojas e fazer comprinhas às sextas sozinha. E eu adorava... Tempos das vacas gordas, naturalmente.

Saí da faculdade, engatei um namoro e minhas sextas-feiras passaram a ser em um ônibus, cheia de bolsas, indo para a Barra da Tijuca, onde meu namorado morava. Por um tempo foi legal, mas depois passou a virar ressentimento o fato de eu ter sempre que ir, que nem uma muambeira, para a casa dele, conviver com os pais dele, os amigos dele, o quarto dele, tudo dele. Ele terminou comigo e meu mundo acabou durante uns cinco meses, até que conheci meu ex namorado.

Entre uma coisa e outra as sextas viraram lamúria. Ficava triste, reservada, amuada. Passei todos os cinco meses chorando. Quando eu comecei a me reerguer conheci meu ex. Logo as sextas passaram a ser um misto de ansiedade e agitação para estarmos juntos, para saber se estaríamos juntos, para nos encontrarmos.

Nossa relação foi ficando mais séria e minhas sextas-feiras passaram a ser nossos encontros. Na verdade, no início, nós estávamos juntos o tempo todo. No nosso segundo ano de namoro, porém, minhas sextas desmoronaram. Ele passou a inventar toda uma sorte de motivos para não estar comigo e sair com os amigos escondido - coisa que agora eu sei mas que passei na penumbra por muito tempo. Passei uns seis meses vivendo sextas horrorosas, porque se uma coisa que era certa era que eu nunca sabia de onde viria o tiro. Como ele apelava dizendo que tinha que ficar com a mãe, porque estava doente etc, eu tentava me adequar naquela caixa difícil de caber. Seis meses depois, esse tipo de sexta chegou ao fim: li conversas dele com os amigos dele no celular e terminei.

As duas sextas de término foram horrorosas. Lembro de ter encontrado uma amiga, me distraído, mas eu estava em pedaços. Não demorou muito para os anseios dele de voltar me convencerem. Voltamos. E na volta eu fui categórica: estou reatando o namoro, mas não vou passar pelo que eu passei com você nos últimos meses. Se for pra ser assim, tchau. Não foi. Ele entendeu bem que final de semana era sagrado, que nas sextas o nosso encontro era quase uma cerimônia de estabilidade do namoro, e poucas vezes brincou mais com a data.

Entretanto, ele levou meu aviso quase ao pé da letra e nos últimos tempos respeitou a sexta e o sábado à noite, mas resolveu farrear durante a semana. Minha intuição me dizia que tinha algo errado, mas resolvi esperar... a sexta. Chegou o aniversário dele na sexta e comemoramos. Na madrugada olhei o celular dele, conversas tortas com os amigos e adeus.

Hoje é a terceira sexta depois que terminei o namoro. Estou bem. Na primeira sexta era pós feriado e passei com minha mãe, vi filmes etc; na segunda sexta eu fui para um curso no Rio, voltei super cansada e até dormi cedo; e hoje estou aqui refletindo sobre sextas... São quatro horas da tarde, ainda é cedo. Eu nem deveria estar escrevendo isso agora. Na verdade eu vim escrever porque estou preocupada com minha saúde física que ficou tão abalada nos últimos meses por causa desse relacionamento tão absurdamente tóxico. Estou preocupada e vim escrever um pouco para aplacar minha ansiedade de continuar comendo vorazmente como tenho feito desde que ele me espancou há seis meses atrás. Não estou me escondendo atrás disso, mas certamente estou tendo que enfrentar de frente as consequências. Estou ponderando a terapia, a academia, o livro que vou ler, os métodos que vou utilizar para me curar. Penso em mim... quanto? O tempo todo.

Esta sexta eu sei que vou passar assim, na paz de estar livre e na ansiedade de ter que lidar com as sequelas que ainda estão presentes. Diante de tantas coisas importantes com as quais lidar, uma ao menos está resolvida: estou em paz! A paz de me habitar, de me bastar e de me ter. Me tenho quando me respeito, me tenho quando me converso sobre limites, me tenho quando me reflito por inteira. Me tenho aqui e agora para me ter cada dia mais. 

É assim que caminha esta sexta, no meu novo passo. Não sou astróloga, então não posso referendar, mas posso dizer, empiricamente que, pra esta taurina aqui, é inegável que as sextas representam grandemente o estado astral do meu ser e hoje, graças, sou paz - e provavelmente um livro e um chocolate.

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Sobre acordar

Estava ótima ontem antes de dormir. Coloquei um vídeo que falava sobre narcisismo para dormir, somente naquela onda de fixar as ideias. Tenho trabalhado sobre a questão assim: descobrimentos, mantras e reafirmações. Adormeci bem.

O despertador tocou às 9h30, mas eu ainda muito cansada, então coloquei para me acordar novamente às 10h30. Mas nem foi preciso, porque por volta de 10h19 acordei espontaneamente de um pesadelo. Foi preciso apenas 49 minutos para minha cabeça dar um looping em um "sonho" tenebroso.

Nele, a gente tinha se encontrado na minha casa (não nessa onde eu moro hoje, uma outra, casa mesmo) com um casal de amigos nossos, para jantar. Você fazia de tudo para ser um fofo, para eu te ver com bons olhos e querer voltar com você.

Não voltei. Me despedi e no adeus você conversou na minha frente com seu amigo, sobre o que você faria no resto daquela noite. Em vez de ir pra casa, como alguém que gostaria de retomar o relacionamento faria, você disse que estava pensando e decidiu ir com esse amigo, com uma amiga nossa e a amiga dela para Petrópolis.

No pesadelo, eu voltei para dentro de casa e me desesperei. Pensei: meu Deus, Petrópolis? Lugar de frio, de estar junto... meu Deus, vou perder. Me desesperei completamente e comecei a andar de um lado para o outro pensando em retomar o relacionamento. E aí me veio na cabeça ligar para ele e pedir pra ele ir de novo lá em casa, naquela hora. Mas e se ele se negasse? Ele voltaria da viagem só porque eu pedi?

Me lembro de um desespero muito profundo, mas também de uma racionalidade muito intensa de que não, eu não poderia voltar a namorar com ele. Não porque eu contei um pouco (quase nada) para as pessoas sobre o que ele fez comigo, mas porque EU SEI que não devo voltar a namorar com ele. Que EU NÃO MEREÇO. Meu ego, meu medo, meu sei lá o que deveria se resolver sozinho, porque eu não iria voltar atrás, tipo um: honey, suck it!

Acordei muito tensa e angustiada. Vê-lo no "sonho" foi horrível, me dilacerou. Vê-lo.. na minha frente, na minha casa que não existe, naquela relação que não era mais o que foi. O toque de realidade ficou em ele querer voltar mas agir de forma completamente contraditória, dizendo na minha frente que iria passar o final de semana viajando com um amigo e duas mulheres. Mas volto a dizer.. vê-lo foi a pior parte. Perto mas tão longe. Tão longe de eu poder voltar a me enganar.

Não queria vê-lo. Não quero nem tão cedo. Aliás, se eu puder, não quero vê-lo nunca mais. Antes de o despertador sequer tocar, abri os olhos. Acho que foi a dor, o temor sobre os pensamentos de considerar voltar.

Meu Deus, por que voltei a dormir, em vez de levantar? Tem horas que o melhor é mesmo acordar.

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Coisa de início e de fim

Pra um término eu quase não chorei.
Pro nosso término eu quase não chorei.
Chorei tanto nos últimos anos que agora pouco sobrou.

"Know it sounds funny
But, I just can't stand the pain
Girl, I'm leaving you tomorrow
Seems to me girl
You know I've done all I can
You see I begged, stole and I borrowed! (yeah)
Ooh, that's why I'm easy
I'm easy like Sunday morning
That's why I'm easy
I'm easy like Sunday morning"


Faz cinco meses que nosso namoro acabou dentro de mim. Foi em março de 2018, em Saquarema, quando você me espancou, me arrastou pelo chão, me jogou contra a cama. Quando eu coloquei um fio na janela para conseguir sair do quarto e ir embora. Foi naquele dia que o último pedaço do meu coração que ainda segurava a gente se quebrou.

"I can see clearly now the rain is gone.
I can see all obstacles in my way.
Gone are the dark clouds that had me blind.
I can see clearly now the rain is gone.
I can see all obstacles in my way.
Here's the rainbow I've been praying for."

Dói relembrar o quanto eu era apaixonada por você. Ouço as músicas que eu ouvia à época em que te conheci e hoje me dói saber que eu fui apaixonada por uma pessoa que não exatamente existia. 

No nosso primeiro ano eu daria minha vida por você. Dentro de mim eu não só era a mulher mais sortuda do mundo por ser amada pela pessoa que eu era apaixonada, mas também por achar que nós éramos imbatíveis. E nós éramos. Por um ano nós fomos porque foi real dentro de mim. Nós conversávamos tanto, nós estávamos sempre juntos, nós tínhamos tantos sonhos em comum, nós nos completávamos. Você o idealizador e eu a realizadora. Era uma combinação perfeita, mas que nunca sairia do papel.

"A friend indeed, come build me up
Come shed your light, it makes me shine
You get the message, don’t you ever forget it
Let’s laugh and cry, until we die
If it wasn’t for you, I’d be alone
If it wasn’t for you, I’d be on my own
Don’t wait ‘til I do wrong
Don’t wait ‘til I put up a fight
You won my heart, without a question
Don’t wait for life
I care for you, I talk to you
In my deepest dreams, I’m fortunate
We got a friendship, no one can contest it
And not to mention, I respect you with my all
If it wasn’t for you, I’d be alone
If it wasn’t for you, I’d have to hold my own
Don’t wait ‘til I do wrong
Don’t wait ‘til I put up a fight
You won my heart, without a question
Don’t wait for life
Not a thing in the world could get between what we share
No matter where you at, no worry I’ll be there
No one’s got your back like I do
Even when the business ain’t going well, we still cool
When I shine, you shine, always on your side
All my life you’ll have what’s mine
Mark my word, we gon’ be alright
My brother, my sister we gon’ be just fine
If it wasn’t for you, I’d be alone
If it wasn’t for you, I’d be on my own
Don’t wait ‘til I do wrong
Don’t wait ‘til I put up a fight
You won my heart, without a question
Don’t wait for life"
(Don't Wait - Mapei)

Mas já havia sinais. Aliás, eles estavam todos ali. No fundo eu sei que o certo a ter sido feito era ter terminado naquele dia em Saquarema (olha a cidade aí de novo...) em que nós éramos ficantes muito assíduos - leia-se, estávamos juntos todos os dias, compartilhávamos tudo; só não tínhamos oficializado ainda - e eu vi no seu celular dezenas de conversas sobre sexo com outras mulheres. Na época eu suspeitava porque você não deixava o celular perto de mim por nada, mas naquele dia eu olhei e vi. Só que eu não enxerguei. Me ludibriando, por causa de umas leituras que eu tinha feito que diziam que o homem, no início, tem dificuldade de largar os "casinhos", eu achei que aquilo logo passaria; que era coisa de início. Em verdade foi coisa de início e de fim. 

"99% anjo, perfeito
Mas aquele 1% é vagabundo"
(Aquele 1% - Wesley Safadão)

Nota mental: sempre prestar atenção nas músicas que o cara canta com muito furor..

Mesmo assim eu segui. Era desesperadora a ideia de deixar de viver toda aquela paixão. Eu precisava. Não havia outra força dentro de mim. Quantas vezes eu andei na rua visualizando nosso casamento. Eu entrando de noiva, você me esperando enquanto tocava "All of me".

"What would I do without your smart mouth
Drawing me in, and you kicking me out
Got my head spinning, no kidding, I can’t pin you down
What’s going on in that beautiful mind?
I’m on your magical mystery ride
And I’m so dizzy, don’t know what hit me, but I’ll be alright
My head’s under water
But I’m breathing fine
You’re crazy and I’m out of my mind
‘Cause all of me
Loves all of you
Love your curves and all your edges
All your perfect imperfections
Give your all to me
I’ll give my all to you
You’re my end and my beginning
Even when I lose I’m winning
‘Cause I give you all of me
And you give me all of you"
(All of you - John Legend)

Quase tirei essa última frase deste texto, a que diz "você me dá tudo de você". Porque eu sei que eu dei tudo de mim e você me deu pouco. Mas seria inverídico com a história real se eu não dissesse que você me deu tudo de você. Porque você me deu; é que você tinha pouco mesmo. Foi o que me fez finalmente conseguir ir embora: entender que você não tinha dentro de você nada além do que tinha conseguido engajar no relacionamento. Mas era pouco pra mim e, ouso dizer, para qualquer relacionamento saudável.

Te amei muito. Te mimava, fazia tudo por você, genuinamente. Como Meghan Trainor falava, "like I'm gonna loose you".

Antes de você viajar eu te dei o ultimato: se você for para a Polônia sem estarmos namorando é o fim. Depois de seis meses juntos, eu não ficaria esperando vinte dias de viagem naturalmente como se namorada fosse sem ser. Você me pediu em namoro no aeroporto. Enquanto você viajava eu malhava pro carnaval, ao som do famigerado Biel ("tô chegando, hein... - na época não se sabia o quanto machista o cantor era) e estudava pra prova de ingresso pro mestrado. Você voltou e vivemos o nosso melhor ano juntos: 2016.

E agora, com pouca ou quase nenhuma poesia, ouvindo as músicas que eu ouvia muito no nosso início e apagando-as da minha playlist, eu acabo de acabar com mais um capítulo desse relacionamento na minha vida.

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Sou eu

Não é ele. Sou eu.

Passei os últimos meses lutando mentalmente com ele. Me afastei fisicamente, me destaquei emocionalmente, me encolhi em mim mesma para me achar. Vivendo tantos abusos, resolvi me desapegar no silêncio. 

Forjando minha independência, entretanto, criei uma armadilha para mim mesma. Acabou de passar por mim um sopro de ciência sobre isso. Sabe a história do predador Barba Azul? Em um momento catártico acabo de me perceber minha própria predadora: estou me matando.

Passei os últimos meses comendo, comendo e comendo. Muito. De cerca de um mês para cá tive espasmos de tentativa de reverter o quadro. Em um primeiro momento a luta contra essa tortura durou quinze dias, depois apenas cinco. Minha estratégia foi rastrear meus hábitos. Estava indo muito bem nos primeiros quinze dias, quando acabei me desvirtuando. Dessa última vez, em relação aos cinco dias que foram interrompidos, fui atravessada por uma bofetada no rosto. Eu não sei o que você sente quando é agredida. Eu sei o que eu já senti nas tantas vezes e principalmente o que eu senti da última vez.

Vim escrever neste momento, depois de uma epifania, mas apenas porque agora estou conseguindo ao menos respirar. Para falar a verdade não estou sentindo nada. Coloquei uma música para ver se entro no flow do sentimento, para possibilitar a escrita, mas tudo em mim está estático. Poderiam dizer que é efeito do novo antidepressivo, mas não é. Estou tomando há mais de um mês e estava bem; nada parecido com o que sinto agora, que sei que é efeito colateral de uma bofetada no rosto. Semana passada o pensamento de sentar e escrever não era uma opção: ia sair sangue nas minhas tintas, ia sair lágrima de todos os poros. Estava tão latente, vivo. Doía mas eu continuava, como um cadáver em vida. A diferença é que era/é um cadáver que comia/e muito.

A agressão foi no domingo. Eu estava dirigindo e ele olhando o celular. Falei: "amor, posso te dar um toque? Você está muito viciado no celular (por causa das apostas)". Começou a acusação por parte dele de que eu também usava muito o celular. Eu falei que se um dos amigos dele estivesse no carro ele não estaria no celular (verdade mais do que verdadeira; ele estaria conversando animadamente) e o chamei de gay. Estava dirigindo e, por ter dito isso, fui esbofeteada no rosto, enquanto eu olhava para frente - sem qualquer chance de ver ou me esquivar.

Claro que eu não deveria ter dito que ele era gay. Eu particularmente não compreendo por que isso é tão ofensivo, mas entendo que na construção macho escroto isso é um acinte. Mas violência física? Não, não justifica.

Dizem minhas leituras que os abusadores têm um ciclo a cumprir. Primeiro a violência, depois a romantização dela. O meu, não. Sofro com um abusador que se justifica em cima de mim. Me viola várias vezes. Mas sempre me rebato com a culpa de me sentir a maior violadora de mim mesma, por permitir. Mas vamos chegar lá... antes, vamos entender o que aquele tapa no rosto significou na minha trajetória de sobrevivência.

Estava eu anotando todos os meus hábitos, desde que acordava até a hora de dormir. Anotando tudo o que comia. Sentindo prazer de estar me cuidando e caminhando o trajeto que eu sabia que tinha que percorrer para me reencontrar. Estava feliz. Me isolei, me recolhi em mim mesma, mas estava encontrando muito prazer em cuidar de mim, de conseguir, dia após dia. Sabe quando você está construindo um castelinho de areia por horas? Sabe quando cada grão de areia que é sobreposto significa um horizonte cada vez mais claro do castelo? Imagina fazer isso dias e dias a fio. Ter como quase o único objetivo de vida ir à praia e sobrepor os grãos. Ao final do dia, anotar todos os grãos sobrepostos para poder perceber seus avanços. Espero que você não saiba o que se sente quando depois de dias e dias de dedicação, o mar vem e arrebata tudo, de uma só vez. Foi assim que aconteceu comigo da última vez. O problema é que a força do mar é irracional, involuntária e ontológica, mas a daquele braço, não.

Eu tenho focado minhas lentes, minhas práticas, toda a minha vida em me erguer, em caminhar na minha solitude, em me entender enquanto ser humano que se basta. Caminhei alguns dias na certeza de que meus hábitos saudáveis de sono, alimentação e atividades seriam a chave para a porta do meu reencontro ainda mais profundo comigo mesma. Mas fiquei ciente da potência de um soco, mais uma vez. Dessa vez eu sentia como se estivesse voltando a correr e de repente algo me arrebatasse, eu caísse no chão e lá ficasse. Sabe como quando aconteceu com o Vanderlei Silva, quando um estranho o empurrou? A diferença é que ele no mesmo minuto levantou e voltou a correr. Devo dizer, entretanto, a "pernada" que vem de dentro de um relacionamento imobiliza.

Passei a última semana obcecada em terminar. Por que não terminei o relacionamento na hora? Sinceramente? Medo. Eu sei qual é a dinâmica de quando eu tento terminar pessoalmente. Ele não me deixa ir embora, é toda uma cena que depois de uma bofetada eu não poderia pensar em passar. Então eu levei a bofetada no rosto e imediatamente me calei. Estava chegando no Rio, peguei o retorno e voltei para Niterói. Deixei-o em casa, me neguei a dar beijo, fui para a minha casa, me deitei na minha cama e quis me matar. Eu já estava morta.

Não estaria exagerando nem um segundo em dizer que aquele soco me matou. Não por completo, porque graças a Deus ainda respiro, mas matou mais um pouco de mim, certamente. Consegui chegar no meu quarto para começar a chorar. Em silêncio, em retidão. Não é o tipo de coisa que você chega em casa e desabafa com sua mãe se você ainda não está com cem por cento de certeza de que vai aguentar o término. Então eu me recolhi.

Passei a semana inteira quieta. Mal falei com ele. Mas falaram comigo. A vida falou comigo três vezes. Na terça-feira, quando eu fui para Seropédica e gravei pra minha rede social a fala das palestrantes, tão afinadas com meus valores  e meu propósito e distantes do que acontecia na minha vida real. Minha mãe, que assistiu à Live que eu fiz da palestra e não sabe das agressões físicas, depois comentou comigo que deve ser muito difícil o que estou passando, já que penso uma coisa e vivo outra no meu relacionamento com ele. Mal sabe ela...

Na quinta a vida falou comigo quando eu estava me encaminhando para a Universidade para dar uma aula sobre teorias feministas. Imagine como eu me sinto uma farsa! Eu digo para minhas alunas que elas não devem esperar o outro, que elas devem se defender, determinar o que está de acordo com os valores delas e pautarem suas relações a partir disso, mas vivo uma relação de ponta cabeça em relação a essas diretrizes.

Ainda na quinta, uma conhecida veio falar comigo no facebook sobre como ela poderia saber mais sobre essas pautas feministas, já que tinha sido agredida pelo namorado, perdoou, mas ele retornou a agredi-la e ela terminou o namoro que dali a duas semanas viraria casamento. Conversei e orientei-na. Expliquei o que ela deveria fazer, o quanto tudo que ela estava sentindo era compreensível e que ele certamente faria novamente se ela aceitasse. Ela terminou o que em duas semanas seria um casamento e eu não consigo terminar um relacionamento que há três anos é dor.

Tenho tanto medo de ficar sozinha que como toda a minha dor, minha decepção com ele e principalmente comigo, permaneço. Tenho tido prazer apenas em planejar e executar algumas ideias profissionais e em comer. Quando olho para a minha vida pessoal só sinto desgosto. Tenho 30 anos, sou feminista e estou em um relacionamento abusivo com um agressor que sequer reconhece e se desculpa. Eu nem sinto que fracassei, porque eu tentei de tudo, eu fiz de tudo. Eu sinto que estou fracassando, em não me libertar. Com medo de sofrer, eu sofro. Com medo de doer, dói. Com medo de ficar sozinha, estou cada vez mais.

Mas para falar a verdade não sinto quase nada neste momento, a não ser apreensão por ser eu, como diz Jorge Vercilo, prisioneiro meu.

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Castelo no chão

Calmaria. Finalmente meu barco seguia por mares romanticamente calmos. Como vocês estão? Bem! Na paz, graças a Deus! Isso me bastava, me aliviava, me fazia focar em mim, e não em nós. Acho que desde que estivemos juntos pela primeira vez eu não sentia essa paz. Será o início de um relacionamento saudável, mais maduro? - eu pensava, agradecendo.

Segunda feira, 5 de março de 2018. Tínhamos passado o sábado e o domingo em outra cidade e precisávamos voltar na segunda porque na terça eu teria que estar em casa para servir de babá do bombeiro hidráulico que realizava a 5a edição do vazamento do meu banheiro.

Estava com muita dor no estômago desde o domingo à noite. Uma dor que eu só tinha até então experimentado por segundos, naquele momento estava durando horas. Dormi e na segunda acordei ainda com dor. Ele me acordou para sairmos para almoçar. Quando eu finalmente levantei ele achou melhor comermos fora quando já estivéssemos voltando de viagem. Concordei. Arrumei parte da casa e tomei meu banho. Na verdade, eu acabei arrumando tudo, mas deixei três pratos na pia e a panela de cachorro-quente que eu tinha feito pra ele no domingo, pois ele não concebia a ideia de sair de tanta ressaca.

A verdade cronológica dos fatos é que quando me levantei para tomar banho ele me disse: tudo bem, só lava a panela de cachorro-quente, por favor. Oi? Eu arrumei tudo, só deixei isso pra você fazer; não vou lavar. Discussão. Pausa. Vou pro banho enervada, com a panela de cachorro-quente ainda suja. Tomo banho revirando mentalmente todos os meus argumentos para não lavar a bendita panela. Sim, era claramente uma questão de posicionamento.

Saí do banho, coloquei meu macaquinho (um azul que eu comprei no ano passado para ir ao aniversário dele. Um dos meus preferidos!) e encontrei ele deitado na sala sem ter movido um pelo da sobrancelha. Estava muito calor, eu estava com fome, com dor, eu só queria ir embora. E ele lá deitado, esperando o espírito santo - leia-se, eu desistir e fazer - lavar a pequena louça de três pratos e uma panela de cachorro-quente. Discussão.

A partir daí não me recordo com detalhes. Tenho cenas em minha mente: estamos discutindo muito, eu aponto o dedo falando alguma coisa, ele manda eu abaixar e mete a mão em mim. Meti o pé nele e ele partiu com tudo pra cima de mim. Com tudo, mesmo.

A cena pra mim não era exatamente uma novidade. Aqui e acolá já tinham acontecido coisas do gênero, mas essa foi a primeira vez que eu achei que fosse morrer. Recebi tapa na cara, fui jogada contra a cama, fui arrastada pelo chão, fui sufocada com a mão na minha boca para que eu não gritasse, minha cabeça foi jogada contra o chão. Eu gritava. Gritava um grito de horror, de desespero, o que supostamente piorava tudo pois ele dizia que eu estava gritando para os vizinhos ouvirem. Oi? Vizinhos? Se eu aprendi alguma coisa nesse dia é que os vizinhos não se importam. Ou não se importam tanto a ponto de fazerem alguma coisa. Porque eu gritei, muito. Quando ele me arrastou pelo chão, ele chegou a dizer: você vai fazer mesmo com que eu seja preso. Vejam bem: você!

Nariz sangrando, vestido preferido rasgado, dois galos na parte de trás da cabeça e um mais leve na frente, me tranquei no quarto sozinha. Comecei a planejar minha saída da casa, porque logo que começamos a brigar ele trancou tudo para que eu não fosse embora. Minhas malas já estavam prontas, meu carro estava lá embaixo, teria sido muito fácil ir embora e ele sabia disso, então ele tornou impossível. Fui até a sala pedir chorando pra ele abrir a porta, que eu só queria ir embora. Ele disse que não e até ensaiou dizer que íamos dormir lá. Eu surtei. Disse chorando que não, que não ia dormir lá de jeito nenhum. Fui para o quarto, me tranquei novamente e comecei a pensar em como descer para o primeiro andar. Vi um rolo de fio preto no canto do quarto e o prendi na dobradiça da porta. Joguei o rolo para baixo e vi que daria pra eu chegar no térreo. Mas e minha mala? Como eu ia jogar minha mala sem quebrar nenhuma telha nem nada que estava dentro da mala, sem chamar atenção? Fiquei um tempo pensando sobre isso e ponderando se ele não ia mudar de ideia, abrir a porta para irmos embora (eu sabia que não iria embora sozinha porque ele não ia ficar lá sozinho), mas o que me fez questionar muito se aquela ideia de me arriscar tanto era a decisão correta foi tudo o que aconteceu no revéillon; toda a minha falta de cuidado para comigo mesma, que poderia ter consequências tão mais graves. Fiquei com medo.

Ele bateu na porta. Tentei tirar o fio para que ele não visse e ele bateu na porta novamente falando que se eu queria ir embora que abrisse a porta logo. Abri. Ele me sentou na cama e fez alguma gracinha. Brincou com o fato de eu ter dito que ele ia me matar. Eu só chorava. Em um dado momento olhei nos olhos dele e fiz um olhar de quem estava achando engraçada a brincadeirinha dele. Eu só queria ir embora. Fomos.

Na volta, eu dirigi todo o percurso com muito sono e em completo silêncio. Ele também. Quando eu o deixei na casa dele, pediu que eu avisasse quando chegasse na minha. Não avisei. Me mandou uma mensagem tarde da madrugada falando qualquer coisa que respondi de forma seca no dia seguinte. Tenho seguido assim. Minhas respostas variam entre sim e ok. Hoje ele me chamou para jantar em uma pizzaria que gostamos muito e que estava com um preço bom e eu disse que não podia porque tinha prazo para entregar. Mentira. Eu só não quero. A pizza até queria. Mas não quero sentar à mesa com ele como se nada tivesse acontecido. Aconteceu. E eu ainda não sei como lidar.

De segunda para terça chorei muito de noite. Ontem chorei muito durante o dia, não consegui fazer nada. Pensei o dia todo em me matar. Minha vida perdeu o significado pra mim, não por causa de um homem, mas porque eu continuo passando por esse tipo de situação, que ainda por cima tem piorado de forma colossal. Ontem eu tenho certeza que eu não fiz nada com minha própria vida única e exclusivamente porque quando aconteceu o que ocorreu no reveillon, minha mãe quase parou de respirar quando achou que eu tivesse sumido. Ela passou dias e dias e quando paramos para conversar ela ainda fala o quanto o mundo dela parou quando ela, durante segundos, achou que eu tivesse sumido. É só por isso que eu não faço nada. Só por ela. Porque ela não merece ter vivido batalhando, trabalhando como fez para me dar as melhores oportunidades e eu simplesmente ser egoísta e me matar. Só por isso. É desesperador ver quanto um evento pode te levar dez casas atrás no tratamento da depressão. Você está lá lutando diariamente, fortalecendo-se, e aí vem um menino mimado e desmorona tudo. Mas o pior disso tudo é eu deixar isso acontecer.

Ele me bater me magoa, mas eu não fazer nada me destrói.

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